domingo, 21 de dezembro de 2008

Bonequinha Linda


Cláudia sempre havia chamado atenção de todos pela sua beleza. Desde pequena foi chamada para fazer comerciais e tirar fotos para publicidade. Existe uma crença de que crianças belíssimas não serão adultos muito atraentes. Isto já estava apavorando os pais de Cláudia que viam uma promissora carreira para a menina caso ela pudesse manter os contatos que seus pais já haviam feito. Os temores se tornaram infundados com o passar do tempo e Cláudia foi uma adolescente belíssima e mais tarde uma mulher estonteante.

Com a vida adulta seus hábitos de criança não mudaram muito. A maior parte de seu tempo ela ficava quietinha esperando que acabassem de arrumá-la. Depois que seu visual estivesse pronto, ela iria ficar quietinha na frente das câmeras e depois passear em silêncio enquanto ouvia exclamações à sua volta. Ela deveria manter aquela expressão de indiferença enquanto outras pessoas falavam sobre seu charme e beleza. Com as outras garotas ela conversaria discretamente por pouco tempo, até que sua mãe ou seu agente pedisse sua atenção em outro lugar.

Cláudia jamais precisou fazer nada além de ficar parada para conseguir a atenção de quem quer que fosse. Tanto na carreira profissional ou para atrair um homem por quem se interessasse, ela só precisaria ficar quieta e manter-se por perto. Quando sua presa finalmente se aproximasse ela o deixaria falar. Ela manteria o ar de indiferença e guardaria na memória o que lhe interessasse. Com seu silêncio, geralmente as pessoas falavam mais e mais e então mais fascinados ficavam os homens e mais vantagens profissionais apareciam. Todos a achavam uma mulher inteligentíssima, só por saber ficar quieta. Em nenhuma situação, profissional ou pessoal, ela daria uma resposta ao final da conversa. Discutiria com seu agente ou sua mãe e depois esperaria um telefonema para dar a resposta final. Telefonemas também vinham com a mesma facilidade que os olhares. O segredo era saber ficar quieta e manter a aparência que os outros quisessem ver.

Porém, um dia, um fotógrafo a deixou bastante confusa. Ele não deixou claro se seu interesse nela era pessoal ou profissional. Ela estava acostumada com interesses pessoais camuflados por interesses profissionais, mas mais cedo ou mais tarde eles acabariam se revelando. O fotógrafo parecia muito entusiasmado com um projeto profissional junto a um empresário conhecido de ambos, mas que não estava na conversa.


- Nós vamos fazer muito dinheiro.

Ele nem sequer perguntou se ela estaria interessada ou não. Ele falava sem parar e ela não teria a chance de retrucar coisa nenhuma mesmo que tivesse a intenção. Ele a olhava com paixão e dizia o quanto ela era perfeita, mas a palavra dinheiro aparecia em cada frase. Nem ele parecia saber qual era seu verdadeiro interesse nela. Quando o agente chegou Cláudia ficou aliviada por um instante, até que viu os dois falarem no mesmo tom histérico e exultante, como se já houvessem conversado a respeito disto antes. Os dois sabiam exatamente do que estavam falando. Algo sobre uma boneca. Esta boneca não fazia nada de especial. Não cantava, não dançava, seus movimentos não eram muitos pois as articulações a deixariam feia, ao que parecia. Esta boneca tinha apenas uma coisa de especial: Ela era feita à imagem de Cláudia.

O tal empresário tinha um escritório no último andar de um prédio com o seu nome. Parecia um homem nervoso, sempre falando alto. Cláudia viu vários desenhos que não pareciam em nada com ela, mas que tinham o objetivo de transformar-se na boneca que levaria o seu nome.
- Ainda não está bom! - zangava-se o empresário - O que as crianças querem é uma boneca com a qual elas possam se identificar. Eu não quero mais uma boneca igual às outras. Eu quero que as crianças se lembrem que existe uma Cláudia de verdade andando por aí!

A negociações continuaram e a árdua busca para um desenho que fosse parecido o bastante com a Cláudia de verdade. Em meio a seus tantos compromissos, Cláudia foi chamada para o escritório do dono daquele prédio. Quando ela chegou lá ele tinha nas mãos o corpo de uma pequenina Cláudia sem roupas, olhos ou cabelos. Apenas o contorno dos traços de seu corpo. Ele a chamou ali para comparar pessoalmente a criatura Cláudia e sua criação.

- Pronto! Era isto que eu queria. Toda menina vai querer uma destas. Esperem só até acrescentarmos os detalhes! Acho que vou fazer outra maior com mais funções que esta. Cláudia apenas observava aquela coisinha frágil sendo agitada pela mão do empresário. Cláudia havia brincado muito pouco com bonecas, talvez por isso não encarasse a pequena coisinha como uma diversão e sim como um estranho recém-nascido. No canto da sala o fotógrafo a observava intrigado. Aquele projeto tinha tudo para fazer milhões. Ele estava imaginando se ela tinha plena noção do que a esperava.

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O mundo parecia ter desabado sobre aquele escritório no último andar. O empresário segurava as mãos com a cabeça.
- Como é que você faz uma coisa destas comigo, menina!?

Cláudia preferiu deixar que seu agente falasse com ele. Ela não via razão nenhuma para pedir desculpas por um acidente que, afinal de contas, havia acontecido com ela.

- Jackes, não tem o menor problema! O cabelo da boneca ainda não foi decidido, foi?

- Ninguém quer uma boneca de cabelos curtos! Não há nem como fazer isso! O náilon fica horrível neste comprimento! Se optarmos por fazer o cabelo já no molde, ela vai ficar parecendo um homem! - o agente de Cláudia se jogou nas costas da poltrona e ficou calado. O empresário continuava - Bonecas têm cabelos de princesinha! Aqueles que vão até à cintura! Como é que isto aconteceu, garota!?

Cláudia não gostou de ser chamada de garota, nem viu motivos para responder àquele homem grosso. Seu agente já estava contando toda a experiência horrorosa do comercial que ela havia gravado no dia anterior. O produtor havia feito questão de fogos de artifício e um deles estourou para o lado errado, justo onde Cláudia estava. Seus cabelos estavam no seguro e ele iria pagar bem caro por ter arriscado a vida de Cláudia daquela maneira. Poderia ter acontecido algo bem mais grave do que simplesmente ter que cortar seus cabelos bem rentes à nuca. Ela estava aliviada por ter saído desta sem nenhuma queimadura no rosto e aquele homem queria que ela se desculpasse por ter tido sorte?!

- Isto é o pior que poderia ter acontecido! Nossa modelo mudar o visual justo agora que tudo estava perfeito. Quero este cabelo longo de novo, ouviu, menina? Tem muito dinheiro envolvido nisto!


Cláudia estava muito confusa com os valores daquele homem e de todos naquela sala. Até sua mãe ficou inconsolável com a notícia que sua filha teve que cortar seus longos cabelos, para só depois ficar aliviada pela sorte que a filha teve. Depois de tantas grosserias o empresário e o fotógrafo começaram a falar de amenidades e fizeram algumas piadas sem graça. Tanto às amenidades como às piadas Cláudia respondeu com sua tradicional frieza. Aquele sorriso que não chega a ser um sorriso, com o qual Claudia havia conquistado meio mundo e escondido tudo o que sentia realmente por baixo de um verniz perfeito.

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Dias depois Claudia recebeu em sua casa a visita do fotógrafo. Ele trazia consigo um protótipo da boneca. Os cabelos eram exatamente como os cabelos que Cláudia tinha antes. Os lábios tinham algo de estranho e não pareciam naturais. Já os olhos eram igual aos de qualquer boneca.

- Ainda bem que você escolheu não ir mais lá. - riu-se o fotógrafo - Jackes está uma fera! Não gostou nada deste rosto. A única coisa que ficou do jeito que ele queria já não parece com você: os cabelos. Ele tentou fazer os lábios carnudos como os seus, mas parece que ninguém acha um meio termo! Ou ficam grossos demais ou finos demais. Outro desafio é imitar este teu sorriso de Mona Lisa...

Cláudia não se sentia nem um pouco envaidecida. Estava de mau humor sem poder falar muito. Não que falar muito fosse um hábito seu, mas agora ela não tinha escolha. Um batom contaminado havia lhe estourado os lábios. Qualquer movimento com a boca causaria uma nova ferida que doía horrores!

- Está feio mesmo, hein? Você já está medicada?

Claudia fez que sim. Não estava muito interessada nos avanços daquele homem. Todo aquele projeto dava-lhe uma sensação desagradável de perda e ela ainda não sabia explicar por quê.

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Ela foi chamada para o escritório de seu agente só para se aborrecer de novo. Havia muito ela já tinha dito que não queria mais ficar à disposição de um projeto que não demandava mais a sua presença do que a de simples fotos. Ela não poderia ficar desmarcando compromissos para atender caprichos daquele homem.

- Eu estou com os riscos deste negócio todo, Matos! Não quero saber da agenda desta mocinha! Agenda que aliás não pode estar tão cheia assim! Olhe só para ela! Está um lixo!

Mas mesmo assim ainda trabalhava. Ela havia até sido chamada para um comercial onde somente seus olhos seriam focalizados. Isto era um alívio pois seus lábios estavam cada vez piores. Se fosse outra modelo não teriam tanta boa vontade com alguém que além de perder cabelos de bom comprimento, ainda estava com os lábios inchados e feridos. Por outro lado lá estava a boneca em cima da mesa. Perfeita em cada detalhe, exceto pelos olhos que ainda estavam “sem vida”. Era esta a reclamação daquele empresário idiota. Ora! O que será que ele estava esperando? Que ela desse seus olhos para a boneca?

- Com estas fotos que Claudia vai tirar hoje o senhor terá uma fonte perfeita para fazer os olhos!

- Eu não quero fotos! Quero que ela fique à disposição de nossos artistas! Não quero passar o mesmo arrocho que passei com os lábios dela. Quero esta boneca o mais realista possível e as fotos não são boas o bastante.

- Eu garanto a você Jackes, depois desta campanha, - vira-se para Cláudia - que caiu do céu para nós, ela vai poder fazer as fotos, poses ou que você quiser na hora que você quiser!

- Acho bom!

Cláudia mantinha os olhos na boneca sobre a mesa. Sua cabeça estava longe. Ela estava procurando entender por que aqueles olhos não serviam. Chegou à conclusão que a boneca parecia cega com aqueles olhos muito abertos, fixos no nada.

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- Ah! Isto eu não vou aceitar mesmo! - Jackes bufava naquele escritório, andando de um lado para o outro. Matos e Jorge, o fotógrafo, tentavam lhe explicar em vão que foi um acidente o que acontecera com os olhos de Cláudia. Afinal, ela não estava acostumada a passar gel nos cabelos. Como poderia saber que seus olhos sofreriam uma reação alérgica ao gel, quando a franja caiu sobre eles?

- Não quero saber! Isto tudo está me cheirando à desculpa esfarrapada! Primeiro ela corta os cabelos depois do projeto iniciado, depois tem problemas nos lábios justo quando eu tenho que terminar a boca da minha boneca! Agora ela fica com os olhinhos ardendo quando eu preciso deles? Não quero saber! Quero ela aqui agora! Estas fotos estão muito diferentes do olhar que ela tem normalmente. Aquele olhar de superior, de deboche. É isso que as meninas gostam nela, e é isso que elas vão ter.

- Mas já está aí, Jackes! Mais parecido, impossível! - Jorge já estava com pena de Cláudia e de Matos. O que Jackes estava fazendo era simplesmente tirar o sossego dos dois, já que ele não estava tendo sossego nenhum com este projeto.

- Eu quero comparar! É o meu dinheiro aqui! Vocês estão entrando com risco nenhum!

Neste ponto até Matos perdeu a paciência.

- O incrível é que, até agora, só nós estamos perdendo com isso!

- Isto já não é problema meu! Se esta garota não ficasse sassaricando por aí ao invés de fazer o serviço dela, nada disso teria acontecido! Matos não teve nem resposta para isso. Mas como também não tinha remédio, tratou de convencer Cláudia a sair de casa do jeito que ela estava, pelo menos para satisfazer os caprichos de Jackes. Assim que ele visse o estado da moça ele a deixaria em paz. Mais satisfeito, Jackes pediu para a assistente trazer o protótipo do carro que seria vendido separadamente. Era o mesmo modelo do que o que Cláudia dirigia.

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Os três homens esperaram e esperaram. Enquanto esperavam, passavam de mão em mão aquela boneca tão perfeita. Era como segurar Cláudia na palma da mão e logo, toda criança poderia fazer o mesmo.

Quando começaram a irritar-se com a demora de Cláudia começaram a imaginar as possibilidades. Cláudia havia ficado muito sentida com a maneira com que Matos falou com ela no telefone. Aquilo havia sido apenas reflexo da pressão que Jackes havia causado. Só que não era do feitio dela não comparecer a compromissos. Só tarde demais começaram a ficar preocupados. Só quando a mãe de Cláudia foi notificada do acidente de sua filha pelo celular. Só acreditaram quando chegaram ao local e os bombeiros ainda estavam trabalhando. A imprensa já estava lá. Ninguém tinha muita esperança de tirá-la com vida dos metais retorcidos. Sua mãe ainda teve esperança que não fosse ela naquele carro. Ninguém a reconhecia. Principalmente porque ela já estava diferente antes deste desastre acontecer. Mas os documentos na bolsa e as roupas tiraram a dúvida.

Lá estava ela, vagamente reconhecível, mais quieta do que nunca.



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