domingo, 10 de maio de 2009

O Nome da Minha Mãe

Eu acordei me sentindo bem melhor do que me sentia quando fui dormir.

Eu nem lembrava o que havia me feito sofrer tanto na noite anterior – talvez fosse apenas um sonho. O importante era que eu estava pronta para mais um dia e não havia nada que me pesasse o coração.

É estranho pensar isso. Normalmente nós não lembramos dos momentos de angústia em ocasiões corriqueiras, muito menos ficamos felizes por não estar em angústia. Mas este era exatamente o meu sentimento ao acordar aquela manhã. Parecia que um sonho angustiante havia ficado para trás e eu tinha certeza que jamais teria aquele sonho de novo.

Então não importava. Era apenas mais um dia. O que havia para fazer? Comparecer a uma audiência no fórum sobre as dívidas de minha mãe. Talvez fosse essa a angústia que eu havia deixado para trás. Mas por que eu me angustiaria com as dívidas dela? Nem ela se angustiava com isso.

E com razão. Como sempre, mamãe conseguiu negociar suas dívidas de maneira bastante razoável. Na verdade, ela iria pagar muito menos do que devia. Ela sempre conseguia estas coisas. Mais tarde lá estávamos nós duas olhando vitrines e procurando melhorar meu guarda-roupa para o passeio no iate de Cláudio.

No entanto, tudo parecia um pouco fora de foco desde o momento em que eu despertei. Para começar, havia uma lembrança em mim de alguém que não dava importância para aquelas lojas que me agradavam tanto. Era uma lembrança em primeira pessoa, como se eu já tivesse sido assim – completamente alheia ao que deveria vestir para uma ocasião como essa.

Um passeio no iate de Cláudio. Mamãe tinha certeza que ele estava interessado em casamento. Alguns rapazes passam mesmo por essas crises em que acreditam que o casamento é a resposta para uma vida insegura e inconstante. Não que eu me importasse com o que ele sentia – mas era um excelente partido. Seria a resposta para muitos problemas – meus e de mamãe. Desde a minha separação as contas estavam mais difíceis de pagar.

Aquele era um dia realmente estranho. Por mais que tentasse, não conseguia me lembrar o motivo de minha separação. Eu quase notei que não conseguia lembrar o nome de meu ex-marido, mas mamãe me chamou para dentro da loja.

O passeio no iate era mais tarde naquele mesmo dia. Minhas amigas estavam lá e mamãe também iria. Seria bom ter um ar “virginal” para preparar o terreno para um compromisso sério. Afinal, estamos no século XXI – não é por ser divorciada que eu deixei de ser uma “boa menina”. Mamãe me criou muito bem. Cláudio não iria achar mulher igual.

Mais uma vez as coisas saíram de foco. Eu senti como se algo devesse me incomodar, mas não senti o incômodo em si. Parecia que alguém estava me “invadindo”. Alguém me dizia que havia algo errado. Não “errado” como se julgasse minha naturalidade em investir em um casamento por conveniência, mas “errado” como se essa naturalidade não fosse algo realmente meu. Foi algo estranho de sentir. Estranho, como se a sensação não fosse “minha”, mas estivesse dentro de mim.

Mamãe tratava de dar atenção a Cláudio enquanto eu, depois de um rápido cumprimento, daria atenção a minhas amigas. Quanto mais distante eu ficasse, mais “difícil” seria. Quem sabe, mais interessante...

Luciana e Eddie estavam sentadas em uma espécie de penteadeira. O iate era enorme e estávamos todas impressionadas. Luciana carregava Lucas, seu filho, no colo. O menino já tinha quase três anos, mas adormeceu como um bebezinho no colo da mãe.

Ver minhas amigas me fez muito bem, mas as sensações estranhas continuaram. Elas não me causavam nenhuma aflição, propriamente dita. Apenas curiosidade. Eu, Eddie e Lu comentamos sobre o iate, falamos sobre Cláudio e, muito naturalmente, eu comentei as sensações – primeiro com Luciana.

- Você acredita se eu disser que não tenho lembrança do nascimento do Lucas?

Lu e Eddie me olharam confusas. Eu continuei.

- Minha lembrança mais recente de você é uma soneca que você tirou no sofá da sala da Eddie, toda vestida de vermelho, e Lucas ainda levaria dois meses para nascer. Elas se entreolharam, menos surpresas do que eu imaginava. Isso me deu um pouco de coragem para dividir minha outra sensação. Essa era mesmo perturbadora.

Enquanto elas comentavam o quanto era estranho que essa fosse minha última lembrança de Luciana, eu disse:

- E eu também tenho a vívida lembrança do funeral de minha mãe.

Minhas amigas fizeram silêncio por um instante. Eu insisti na loucura, mas acreditava em cada palavra que eu dizia, apesar de nada fazer sentido.
- A lembrança está forte e vívida. Vocês estavam lá, pelo menos Eddie estava. Minha mãe está lá na no convés do iate neste momento e eu lembro exatamente de como foi ir ao velório dela. Eu me lembro do enterro de minha mãe...

Houve um silêncio compreensível depois destas palavras, mas o incompreensível veio a seguir. Eddie e Lu se entreolharam longamente, até que Eddie disse a coisa mais estranha para mim:
- Nós estávamos comentando isso antes de você chegar. Nós também lembramos do enterro de sua mãe. Foi no cemitério São João Batista.

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Eu, Luciana e Eddie somos amigas há muito tempo. Conversamos um pouco sobre teorias de inconsciente coletivo, sonhos e outras histórias, mas nada me distraiu. O mais estranho era não sentir nada, nem agonia, nem medo. Só confusão e curiosidade. Eu não sentia nenhuma angústia.

Mas já estava na hora de falar com Cláudio. Ele estava me esperando perto da mesa de pôquer. Várias opções de jogos enfeitavam as paredes e os móveis. Cláudio começou uma conversa casual, daquelas que não levam a lugar nenhum. Depois começou a falar de como ele valorizava o compromisso e como queria construir uma vida mais calma. Foi então que eu fiz a pergunta errada.
- Cláudio, você sabe o nome da minha mãe?
Ele pareceu confuso e, para minha surpresa, um tanto ofendido.
- Claro! Que tipo de pergunta é essa?
Eu queria descobrir mais, porém eu sabia que isso ia me custar caro.
- Você tem que saber o nome da minha mãe. Vocês são amigos. A questão é que... – e isso era a mais pura verdade - ...eu não sei o nome dela.
Eu não esperava por isso. Cláudio colocou as mãos na cintura e baixou os olhos, como se estivesse decepcionado. Depois jogou a mesa de pôquer na parede e quebrou um copo de uísque no chão.


Cláudio estava furioso:
- Eu acabo com sua dor, eu acabo com a vida de merda que você tinha e te dou outra, e é assim que você agradece!? Fora! Fora daqui! Você está por sua conta, agora. Suma daqui!!!
Eu não iria discutir com aquele homem insano. Corri para fora do iate e não vi sinal de minha mãe. Corri até perceber que não sabia para onde ir, não sabia para onde voltar. Minha mãe não estava em lugar nenhum. Pensei em minhas amigas. Olhei de volta para o barco e ele parecia vazio.

Eu tinha minha bolsa comigo. Na agenda eu acharia algum endereço. Foi assim que descobri que a mulher que disse que era minha mãe morava no Flamengo. Rua Marquês de Abrantes.

Eu nem precisei chegar até a porta do prédio. Ela mesma estava se dirigindo para a entrada. Ela já não estava com as roupas bonitas de antes e seu cabelo estava preso com um lenço. Agora eu a via com mais clareza. Seus cabelos eram crespos e grisalhos na raiz. Ela estava sem maquiagem e não se parecia nada comigo.

Eu chamei: “Mãe”. Ela não atendeu. Chamei mais uma vez e ela continuou andando para o portão do prédio. Foi então que eu perguntei:
- Você sabe o nome da minha mãe de verdade? Aquela que não é você.
Ela não respondeu.
- E para onde eu vou agora? – perguntei – Também não tenho onde morar?
Ela fechou o portão e me olhou com indiferença.
- Você mora em Copacabana. – E isso foi tudo o que ela disse antes de ir embora.
Então eu lembrei que conhecia Copacabana muito bem.


Apesar de conhecer Copacabana, eu não conseguia lembrar meu endereço. Eu cheguei a procurar a chave de casa na bolsa, mas a chave que eu tinha era do apartamento daquela mulher – aquele que não era meu.

Tudo que eu conseguia lembrar era o endereço da minha lavanderia. Foi lá que eu consegui chegar. Foi lá que eu vi um rosto conhecido. A mulher morena, de olhos castanhos e voz idêntica à minha foi dizendo, mesmo antes de se aproximar:
- Quem é vivo sempre aparece.

O nome dela era Luciana, assim como o da minha amiga, mãe do Lucas. Luciana carregava um saco de roupas para um carro enorme. O carro estava vazio, assim como a vida dela. Eu a conhecia muito bem.
- Você sabe que nós somos irmãs, não sabe?

Ela suspirou e apenas disse:
- Quem se afastou foi você.
Nenhuma lembrança de afastamento veio à minha mente. Eu culpei a mulher que se dizia minha mãe por isso, mesmo sem saber por quê.
- Luciana, apenas me diga uma coisa e eu te deixo em paz.
Ela agarrou a porta do carro, pronta para batê-la, mas me concedeu esta última pergunta:
- Como era o nome da nossa mãe?


Luciana continuava com a porta aberta e a mão firme no puxador, mas não batia a porta do carro ainda.
- Nós somos irmãs – eu disse – e temos a mesma mãe. Eu só quero que você me diga o nome dela.
Como sempre fazia quando ficava acuada, Luciana demonstrou estar profundamente entediada.
- Eu tenho as fotos da mamãe. Eu fiquei com as fotos.
Eu insisti:
- Mas e o nome dela?
Luciana me respondeu sem virar o rosto para mim.
- Passe lá em casa e eu te mostro as fotos. Só não vá hoje. A casa está uma bagunça.


Eu sabia que estava perto do meu apartamento. Eu só não conseguia me lembrar onde ele era. Mesmo que lembrasse, não havia chave. Ele provavelmente já estava com outra pessoa. Havia toda uma vida que eu deixei para trás e as coisas se arrumaram de acordo com este meu abandono. Haviam mais irmãos esquecidos, mais fotos e parentes. Haviam mais amigos. Mas tudo o que eu tinha agora era o rosto e o nome de uma irmã... e uma idéia muito clara de onde ela morava.

Foi para o apartamento dela que eu fui. Eu sabia que não era o apartamento dela, mas era o apartamento onde ela estaria. Não era o condomínio onde ela, o marido e o filho viviam aproveitando a praia e a piscina. Minha irmã estava morando em um pequeno apartamento na Tijuca. Eu simplesmente sabia que ela morava só e levava trabalho para fazer em casa todos os dias. Eu sabia até com que roupa ela iria atender a porta. Ela tinha os cabelos presos e estava esbaforida. Ainda estava revirando gavetas e pastas empoeiradas. Seu nariz estava vermelho de tanto espirrar. Qualquer quantidade de poeira atacava sua alergia, até mesmo a poeira dos sacos plásticos onde ela havia protegido as fotos de nossa família.

- Olhe só para isso! – Ela também parecia ter adivinhado a minha chegada. Ela não havia mentido. A casa realmente estava uma bagunça se eu fosse comparar aquele ambiente ao tipo de quarto que minha irmã sempre teve. A rainha da arrumação havia espalhado fotos pelo tapete todo. Havia um motivo muito forte para as fotos estarem espalhadas.

- Veja – disse ela, - o rosto dela está apagado em todas as fotos. Existem algumas senhoras aqui nas fotos mais recentes, mas eu não sei qual destas pode ser ela.

Foi muito bom que eu não ter dado ouvidos à minha irmã e ter aparecido no apartamento dela sem demora. Ela parecia confusa. Ela também fora afetada pela falsa certeza que Cláudio construiu para nós. Eu imaginei se ela também teria feito o mesmo pedido. Acho difícil que tenha feito. Não imagino Luciana chorando antes de dormir, desejando esquecer a pessoa de quem sentia tanta falta. Isso é o tipo de coisa que só eu faria.

Mas eu me lembro que a dor foi muito grande naquela noite. Eu realmente questionei se não seria melhor ter tido outra vida. Eu estava só, minhas escolhas me afastaram dos relacionamentos mais sérios. Não tive os filhos que sempre quis ter e nunca casei. A agitada Copacabana não me fazia esquecer que eu morava só e tinha poucos amigos. Os amigos de minha mãe tinham um tipo de religiosidade que não me fazia falta. Entre toda a minha dor no enterro, o único conselho que eu ouvi de um deles foi abandonar as fotos de minha mãe.

- Ficar olhando fotos com amor é idolatria.

E Deus pôs um limite na sabedoria, mas não pôs limite na burrice e na crueldade. Que pena. A foto na minha mão foi ficando mais nítida. O sorriso de minha mãe aos vinte e poucos anos foi aparecendo. Seus cabelos estavam cacheados por um permanente, seu vestido era branco, feito por ela mesma. Era uma bela foto dela antes de conhecer meu pai. Não era uma foto de verdade. Ela nunca tirou uma foto sorrindo tão naturalmente. Estes momentos não foram capturados por câmeras, mas estavam vivos na minha memória.

- O nome dela era Lindaura. Ela é Lindalva na certidão de nascimento, mas constava Lindaura na certidão do primeiro casamento. Ela nunca gostou do nome de batismo e logo na adolescência ela foi apelidada de “Anita”. Era este o nome que ela gostava e por toda sua vida foi conhecida por “Dona Anita”. Quando casou com meu pai passou a se chamar Lindaura Cardoso Balan. Este é o nome em sua certidão de óbito.

As fotos ganharam nitidez. Eram fotos que existiam somente ali, no falso apartamento de minha irmã. Dentre as nossas fotos mesmo, muitas foram perdidas. Eu ainda segurei forte aquela nova foto de minha mãe. Uma que nunca havia visto. Mas já era hora de ir. A tentação não surtiu efeito.


Acordei com os olhos inchados porque havia chorado muito no dia anterior. Era inevitável. Muitas vezes sentia tanta falta de mamãe que chorava até perder o fôlego. Morar sozinha não ajudava muito, mas foi essa a vida que eu escolhi. O choro ocasional fazia parte dela, como da vida de tantas outras pessoas. Eu imaginei se era mesmo um choro de tristeza. Meus olhos ficaram úmidos da primeira vez que vi as pinturas de Bouguereau. Eu sempre chorei com Madame Butterfly. Eu chorei quando vi a carinha achatada e confusa do meu sobrinho quando nasceu. Eu tenho uma certa inveja das pessoas que passam pela vida elegantemente, fazendo as escolhas certas e vivendo como uma propaganda de perfume. Eu realmente trocaria de lugar com elas?

Sem medo de cometer nenhum pecado e sem medo de chorar até não conseguir respirar eu fui até aquela parte do armário onde eu guardo o que eu quase nunca pego. Abri a caixa que só abria quando a memória falhava e tirei de lá um porta-retrato no meio de flores secas. Mamãe sempre detestou aquela foto, mas ela já não opina na minha vida há mais de uma década. Chorando ou não, sofrendo ou não, eu coloquei o porta-retrato com a foto de minha mãe Anita, e Lindaura também, na prateleira. Branca e linda. Uma alma bonita. Coloquei o porta-retrato na prateleira para lembrar mais freqüentemente do tesouro que eu nunca vou perder.

quinta-feira, 22 de janeiro de 2009

A Captura

Eu me lembro daquela noite. Era inverno e a névoa que pairava sobre a praia era tão densa que mal podíamos ver uns aos outros. Talvez aquilo nos tenha atraído para aquele lugar: a sensação de estarmos muito mais distante da confusão da cidade do que realmente estávamos.

A Vieira Souto havia desaparecido atrás de nós, restando apenas o vulto dos prédios e a luz dos holofotes no calçadão da praia, a qual apenas iluminava a névoa tornando-a ainda mais densa. À beira-mar o som das ondas chegava a abafar o barulho dos carros que passavam na avenida.

Afastei-me dos meus amigos para ficar só dentro da cerração. Tudo que eu podia ver eram as ondas brotando da névoa em direção aos meus pés. Por um instante eu tive medo. Recuei para poder ver meus amigos e percebi que eles não estavam longe. Fiquei um pouco mais tranqüila e voltei para a beira do mar.

A sensação de isolamento foi tão entorpecente... Tão sedutora... Perdi aos poucos o contato visual com meus amigos, o som de suas vozes ficou cada vez mais abafado pelas ondas até desaparecer completamente. Então até o som das ondas desapareceu. Uma onda escura afastou a névoa e me engolfou. Nem o mar, nem meus amigos, nem a cidade emitiam um som sequer. Pela escuridão tão forte e o silêncio tão pesado eu achei que tinha morrido naquele instante.

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Acordei com a sensação de ter dormido por muito tempo. O silêncio era absoluto, mas a escuridão havia passado. Eu estava deitada num chão polido como um espelho. De resto, pouco se podia ver. Pela extensão da minha sombra percebi que havia uma fonte de luz bem atrás de mim. Eu me virei e pude distinguir uma silhueta. Uma figura alta demais, esguia demais para ser humana. Imaginei que espécie de boneco seria aquele. Então ele se mexeu em minha direção.

O grito que brotou de minha garganta cortou o silêncio como uma navalha. Foi como gritar de madrugada. O grito tomou proporções irreais. A criatura recuou cambaleando e se pôs contra a luz. A claridade me cegou temporariamente. Enquanto eu tateava pelo ambiente ele movimentava-se mantendo uma certa distância. Percebi que ele analisava minhas reações nos mínimos detalhes. Com alguma dificuldade eu já conseguia distinguir sua forma.

Aquilo poderia ter mais de dois metros e meio de altura. Sua cabeça era oval e seu rosto era achatado, os ombros eram muito largos e o quadril era estreito. A partir dos joelhos, suas pernas engrossavam até o chão. Ele não tinha pés ou pelo menos a articulação do tornozelo. Talvez por isso seus movimentos fossem tão brutos. O antebraço também era demasiado grosso em relação ao corpo. Nas mãos havia apenas o polegar e uma articulação onde seriam quatro dedos. No rosto a criatura tinha apenas um orifício onde seriam as narinas e dois orifícios onde seriam os olhos. Não me atrevi a olhar dentro deles.

Ele se aproximou novamente e eu gritei. A esta altura ele já havia percebido que a ameaça era ele, não eu. Eu jamais havia sentido tanto medo na minha vida, mas, de repente, sem nenhuma razão para isso, o medo desapareceu. Era como se meu cérebro houvesse recebido uma ordem que não era minha. Meu coração parou de palpitar e o medo sumiu. Isso não era natural.

“Você está me controlando!”. Eu não esperava uma resposta, porém:

“É preciso que nos comuniquemos”. A minha própria voz ecoava dentro da minha cabeça.
“Você está dentro da minha cabeça. O que eu tenho para dizer que você não pode descobrir sozinho?”.

Sem o medo, tudo o que eu sentia era irritação. Seria prudente me afastar dele, mas ele estava me induzindo a enfrentá-lo.

“Eu não possuo os seus pensamentos, apenas transmito os meus de maneira que você possa me compreender.”
“Então você entende o que eu quero?”
“É evidente que você quer respostas. Faça as perguntas.”

Não sei como ele entendeu que eu queria respostas. Eu estava tão confusa que nem sabia por onde começar.

“Quem é você?”
“Sou um pesquisador. O último sobrevivente desta nave.”
“Nave?!”

Olhei à esquerda e vi uma enorme janela. Através do vidro eu vi rochas boiando na escuridão. A única coisa que as iluminava era a luz que vinha da própria nave. Eu não tinha idéia da distância que elas estavam ou do tamanho que tinham. Não havia nada além delas na escuridão.

“Eu estou no espaço!?”

Não havia sinal da Lua, Sol ou qualquer coisa que eu pudesse identificar. Eu só via escuridão. Por outras janelas eu vi manchas brancas, mas nada parecido com o céu que eu conhecia.

“O seu planeta fica naquela direção.”

Atravessei a sala e cheguei até a janela que ficava na parede oposta. De lá vi outras manchas brancas. Entre elas, uma era bastante parecida com ilustrações que havia visto da Via Láctea.

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“Por quê?”

Foi só o que consegui balbuciar. Minha própria voz continuava explicando de modo implacável tudo o que eu não conseguia mais entender.

“Nós tínhamos provas que havia vida em seu sistema solar. Com a análise de seu corpo percebemos que seu organismo é complexo, bem parecido com o nosso e isso reforça nossa teoria de uma origem comum para nossas raças. No entanto é espantoso o quanto o potencial de seu cérebro não é aproveitado pelo seu corpo”.

De uma maneira estranha eu comecei a me ressentir comigo mesma. Eu me ressentia pelas coisas cruéis que minha própria voz dizia.

“Estudamos muito e descobrimos que a interferência está em sua estrutura.”

Ele me guiou gentilmente para a fonte de luz que eu havia notado assim que acordei. Na verdade era um grande bloco metálico com uma enorme abertura frontal de onde uma luz fortíssima emanava. Minha própria voz era cruel dentro da minha cabeça. Ele, ao contrário, era gentil e me amparava. Ele era o único conforto no meio de todo aquele vazio e daquela escuridão.

“Este sistema pode transformar seu corpo de maneira que ele aproveite todo o seu potencial”.

Pelo menos era claro na caixa metálica. Era a única luz que havia por perto. Era certamente o único lugar em que eu poderia me sentir segura e bem. Lá fora era tão frio e na caixa era quente. Era com certeza... algum tipo de... radiação.

Foi por puro reflexo que, ao sentir o calor daquela luz sobre mim, me virei sobre os calcanhares e tentei me livrar de seus braços, mas ele era forte demais. Pensar foi ficando mais difícil para mim e meu corpo ficou muito pesado. Eu sabia que havia uma maneira fácil de derrubá-lo, mas tudo o que eu sabia era que o esforço era inútil. Ele era muito mais forte do que eu. Isso era estranho, porque ele era tão magro... Sua figura era muito delgada, mas ele era forte. Não havia dúvida de que ele era mais forte que eu. Eu não tinha nenhuma vantagem física sobre ele – isso era certo. Nenhuma. A não ser... algo. Havia uma vantagem para mim, mas não conseguia lembrar qual era.

Eu estava perdendo a sensação no meu braço esquerdo. Eu achei que ele estava sumindo, mas eu vi que minha carne estava se transformando em uma espécie de metal. Meu pé esquerdo também estava desaparecendo, dando lugar àquele estranho espelho líquido. Aquilo subia vagarosamente pelo meu tornozelo. Eu escorreguei e a criatura magra que me segurava cambaleou.

Ele cambaleou como antes.

Ele cambaleou porque não tinha tornozelos.

Eu ainda tinha um.

Como nas brincadeiras de criança, joguei a perna para o lado na tentativa de dar uma rasteira naquela criatura tão forte e tão alta. Eu jamais havia conseguido dar rasteira em alguém antes. Esta foi a primeira vez. Ainda com lembranças da minha infância aparecendo em flashes na minha cabeça, lembrei da bruxa que nunca havia visto, mas imaginei mais de mil vezes – aquela que Maria empurrou para o forno. Ela fez isso para salvar seu irmãozinho. Eu não sabia ao certo por que tinha jogado o homem alto no forno... na luz... na caixa. Não havia porta naquela caixa. Eu não poderia trancar a bruxa lá dentro.

O que a bruxa faria comigo e com João quando saísse do forno?

Por um momento fiquei caída no chão olhando para o brilho da caixa de metal. Aos poucos entendi que me preocupava muito com aquela luz e o que ela poderia fazer comigo. Era um tipo de radiação. O tipo de radiação rouba a sensação de seu braço e de sua perna. Eu conseguia mexê-los, mas não pareciam ser meus. Eu os havia perdido, mas eles ainda estavam grudados em mim. Mexendo, funcionando, agindo... Por quanto tempo continuariam em mim?

A luz tornou-se mais intensa e se espalhou por toda a sala. Tudo parecia um espelho. Toda a sala era agora nada mais que espelhos e vidros. Eu virei o rosto daquela caixa, fonte de luz, mas o brilho ricocheteava ao meu redor. Por trás dos vidros havia apenas rochas e escuridão. Dentro da sala eu não conseguia ver nada. Não sentia nem minha perna, nem meu braço esquerdo. O resto de mim parecia ainda estar lá. O que havia sobrado de mim era a única coisa a ser refletida naquela sala – todo resto era luz, escuridão e espelhos.

Então eu ouvi passos estranhos e brutos vindo em minha direção.

A bruxa estava cambaleando para fora do forno.

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(continua...)