quinta-feira, 22 de janeiro de 2009

A Captura

Eu me lembro daquela noite. Era inverno e a névoa que pairava sobre a praia era tão densa que mal podíamos ver uns aos outros. Talvez aquilo nos tenha atraído para aquele lugar: a sensação de estarmos muito mais distante da confusão da cidade do que realmente estávamos.

A Vieira Souto havia desaparecido atrás de nós, restando apenas o vulto dos prédios e a luz dos holofotes no calçadão da praia, a qual apenas iluminava a névoa tornando-a ainda mais densa. À beira-mar o som das ondas chegava a abafar o barulho dos carros que passavam na avenida.

Afastei-me dos meus amigos para ficar só dentro da cerração. Tudo que eu podia ver eram as ondas brotando da névoa em direção aos meus pés. Por um instante eu tive medo. Recuei para poder ver meus amigos e percebi que eles não estavam longe. Fiquei um pouco mais tranqüila e voltei para a beira do mar.

A sensação de isolamento foi tão entorpecente... Tão sedutora... Perdi aos poucos o contato visual com meus amigos, o som de suas vozes ficou cada vez mais abafado pelas ondas até desaparecer completamente. Então até o som das ondas desapareceu. Uma onda escura afastou a névoa e me engolfou. Nem o mar, nem meus amigos, nem a cidade emitiam um som sequer. Pela escuridão tão forte e o silêncio tão pesado eu achei que tinha morrido naquele instante.

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Acordei com a sensação de ter dormido por muito tempo. O silêncio era absoluto, mas a escuridão havia passado. Eu estava deitada num chão polido como um espelho. De resto, pouco se podia ver. Pela extensão da minha sombra percebi que havia uma fonte de luz bem atrás de mim. Eu me virei e pude distinguir uma silhueta. Uma figura alta demais, esguia demais para ser humana. Imaginei que espécie de boneco seria aquele. Então ele se mexeu em minha direção.

O grito que brotou de minha garganta cortou o silêncio como uma navalha. Foi como gritar de madrugada. O grito tomou proporções irreais. A criatura recuou cambaleando e se pôs contra a luz. A claridade me cegou temporariamente. Enquanto eu tateava pelo ambiente ele movimentava-se mantendo uma certa distância. Percebi que ele analisava minhas reações nos mínimos detalhes. Com alguma dificuldade eu já conseguia distinguir sua forma.

Aquilo poderia ter mais de dois metros e meio de altura. Sua cabeça era oval e seu rosto era achatado, os ombros eram muito largos e o quadril era estreito. A partir dos joelhos, suas pernas engrossavam até o chão. Ele não tinha pés ou pelo menos a articulação do tornozelo. Talvez por isso seus movimentos fossem tão brutos. O antebraço também era demasiado grosso em relação ao corpo. Nas mãos havia apenas o polegar e uma articulação onde seriam quatro dedos. No rosto a criatura tinha apenas um orifício onde seriam as narinas e dois orifícios onde seriam os olhos. Não me atrevi a olhar dentro deles.

Ele se aproximou novamente e eu gritei. A esta altura ele já havia percebido que a ameaça era ele, não eu. Eu jamais havia sentido tanto medo na minha vida, mas, de repente, sem nenhuma razão para isso, o medo desapareceu. Era como se meu cérebro houvesse recebido uma ordem que não era minha. Meu coração parou de palpitar e o medo sumiu. Isso não era natural.

“Você está me controlando!”. Eu não esperava uma resposta, porém:

“É preciso que nos comuniquemos”. A minha própria voz ecoava dentro da minha cabeça.
“Você está dentro da minha cabeça. O que eu tenho para dizer que você não pode descobrir sozinho?”.

Sem o medo, tudo o que eu sentia era irritação. Seria prudente me afastar dele, mas ele estava me induzindo a enfrentá-lo.

“Eu não possuo os seus pensamentos, apenas transmito os meus de maneira que você possa me compreender.”
“Então você entende o que eu quero?”
“É evidente que você quer respostas. Faça as perguntas.”

Não sei como ele entendeu que eu queria respostas. Eu estava tão confusa que nem sabia por onde começar.

“Quem é você?”
“Sou um pesquisador. O último sobrevivente desta nave.”
“Nave?!”

Olhei à esquerda e vi uma enorme janela. Através do vidro eu vi rochas boiando na escuridão. A única coisa que as iluminava era a luz que vinha da própria nave. Eu não tinha idéia da distância que elas estavam ou do tamanho que tinham. Não havia nada além delas na escuridão.

“Eu estou no espaço!?”

Não havia sinal da Lua, Sol ou qualquer coisa que eu pudesse identificar. Eu só via escuridão. Por outras janelas eu vi manchas brancas, mas nada parecido com o céu que eu conhecia.

“O seu planeta fica naquela direção.”

Atravessei a sala e cheguei até a janela que ficava na parede oposta. De lá vi outras manchas brancas. Entre elas, uma era bastante parecida com ilustrações que havia visto da Via Láctea.

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“Por quê?”

Foi só o que consegui balbuciar. Minha própria voz continuava explicando de modo implacável tudo o que eu não conseguia mais entender.

“Nós tínhamos provas que havia vida em seu sistema solar. Com a análise de seu corpo percebemos que seu organismo é complexo, bem parecido com o nosso e isso reforça nossa teoria de uma origem comum para nossas raças. No entanto é espantoso o quanto o potencial de seu cérebro não é aproveitado pelo seu corpo”.

De uma maneira estranha eu comecei a me ressentir comigo mesma. Eu me ressentia pelas coisas cruéis que minha própria voz dizia.

“Estudamos muito e descobrimos que a interferência está em sua estrutura.”

Ele me guiou gentilmente para a fonte de luz que eu havia notado assim que acordei. Na verdade era um grande bloco metálico com uma enorme abertura frontal de onde uma luz fortíssima emanava. Minha própria voz era cruel dentro da minha cabeça. Ele, ao contrário, era gentil e me amparava. Ele era o único conforto no meio de todo aquele vazio e daquela escuridão.

“Este sistema pode transformar seu corpo de maneira que ele aproveite todo o seu potencial”.

Pelo menos era claro na caixa metálica. Era a única luz que havia por perto. Era certamente o único lugar em que eu poderia me sentir segura e bem. Lá fora era tão frio e na caixa era quente. Era com certeza... algum tipo de... radiação.

Foi por puro reflexo que, ao sentir o calor daquela luz sobre mim, me virei sobre os calcanhares e tentei me livrar de seus braços, mas ele era forte demais. Pensar foi ficando mais difícil para mim e meu corpo ficou muito pesado. Eu sabia que havia uma maneira fácil de derrubá-lo, mas tudo o que eu sabia era que o esforço era inútil. Ele era muito mais forte do que eu. Isso era estranho, porque ele era tão magro... Sua figura era muito delgada, mas ele era forte. Não havia dúvida de que ele era mais forte que eu. Eu não tinha nenhuma vantagem física sobre ele – isso era certo. Nenhuma. A não ser... algo. Havia uma vantagem para mim, mas não conseguia lembrar qual era.

Eu estava perdendo a sensação no meu braço esquerdo. Eu achei que ele estava sumindo, mas eu vi que minha carne estava se transformando em uma espécie de metal. Meu pé esquerdo também estava desaparecendo, dando lugar àquele estranho espelho líquido. Aquilo subia vagarosamente pelo meu tornozelo. Eu escorreguei e a criatura magra que me segurava cambaleou.

Ele cambaleou como antes.

Ele cambaleou porque não tinha tornozelos.

Eu ainda tinha um.

Como nas brincadeiras de criança, joguei a perna para o lado na tentativa de dar uma rasteira naquela criatura tão forte e tão alta. Eu jamais havia conseguido dar rasteira em alguém antes. Esta foi a primeira vez. Ainda com lembranças da minha infância aparecendo em flashes na minha cabeça, lembrei da bruxa que nunca havia visto, mas imaginei mais de mil vezes – aquela que Maria empurrou para o forno. Ela fez isso para salvar seu irmãozinho. Eu não sabia ao certo por que tinha jogado o homem alto no forno... na luz... na caixa. Não havia porta naquela caixa. Eu não poderia trancar a bruxa lá dentro.

O que a bruxa faria comigo e com João quando saísse do forno?

Por um momento fiquei caída no chão olhando para o brilho da caixa de metal. Aos poucos entendi que me preocupava muito com aquela luz e o que ela poderia fazer comigo. Era um tipo de radiação. O tipo de radiação rouba a sensação de seu braço e de sua perna. Eu conseguia mexê-los, mas não pareciam ser meus. Eu os havia perdido, mas eles ainda estavam grudados em mim. Mexendo, funcionando, agindo... Por quanto tempo continuariam em mim?

A luz tornou-se mais intensa e se espalhou por toda a sala. Tudo parecia um espelho. Toda a sala era agora nada mais que espelhos e vidros. Eu virei o rosto daquela caixa, fonte de luz, mas o brilho ricocheteava ao meu redor. Por trás dos vidros havia apenas rochas e escuridão. Dentro da sala eu não conseguia ver nada. Não sentia nem minha perna, nem meu braço esquerdo. O resto de mim parecia ainda estar lá. O que havia sobrado de mim era a única coisa a ser refletida naquela sala – todo resto era luz, escuridão e espelhos.

Então eu ouvi passos estranhos e brutos vindo em minha direção.

A bruxa estava cambaleando para fora do forno.

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(continua...)

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